Maconha

Em “Cannabis”, Box Brown questiona o processo de “ilegalização” da maconha nos Estados Unidos

Desde o título, Cannabis: A Ilegalização da Maconha nos Estados Unidos deixa clara a posição de seu autor: Box Brown sustenta que a marijuana jamais deveria ter sido proibida.

Até então inédito no Brasil, o quadrinista americano lançado agora pela editora Mino tende a se tornar um nome em evidência. Recentemente, Brown ganhou o prêmio Eisner (o principal do mercado de seu país) por Is This Guy for Real?, uma biografia do comediante Andy Kaufman (o mesmo interpretado por Jim Carrey no filme O Mundo de Andy, em 1999). E a Mino promete trazer Tetris: the Games People Play, sobre o famoso jogo eletrônico.

Com um desenho cartunesco e um didatismo que se permite a ironia e a digressão, o comentário político e a crítica aos poderes, Cannabis enseja uma comparação entre Box Brown e o cineasta Michael Moore (há até a aliteração nos nomes), de documentários como Tiros em Columbine e Sicko. Na HQ recém publicada por aqui (tradução de Diego Gerlach, 256 páginas, R$ 69,90), o quadrinista ampara-se em uma série de artigos e documentos online e em alguns livros, todos citados ao final do livro. Ele abre a HQ reconstituindo como teria sido a primeira vez da humanidade com a maconha. Elenca os efeitos positivos (a ação anti-inflamatória, a diminuição da náusea e da sensibilidade à dor, a melhora no humor, o estímulo à criatividade) e depois os negativos (paranoia, alucinações, desorientação, dificuldades na memorização a curto prazo).

É a deixa para o autor mergulhar na história da droga (que, aliás, raramente é referida dessa forma), das tradições religiosas na Índia até a perseguição pelo governo americano no século 20, passando pela introdução do cânhamo nas Américas pelos conquistadores espanhóis. Brown acusa o que classifica como uma campanha de desinformação e aponta o dedo para alguns “vilões”, como Harry J. Anslinger (1892-1975), criador de uma estratégia que associou a maconha à criminalidade e à depravação, por meio da omissão ou da deturpação de pesquisas científicas, segundo as fontes consultadas. Há “heróis” também, como Dennis Peron (1945-2018), que lutou pela aprovação do uso medicinal. O quadrinista ainda joga luz sobre a relação entre proibicionismo e racismo – primeiro contra os mexicanos, que disseminaram o hábito (o apelido marijuana vem daí), depois contra os negros, que vendiam para um consumidor majoritariamente branco.

O que psiquiatras dizem sobre a maconha

Brown é tão assertivo em sua defesa da maconha e em seu ataque ao que chama de mentiras sobre os malefícios da cannabis, que GaúchaZH resolveu entrevistar dois psiquiatras brasileiros acostumados a lidar com o assunto. Um é o paulistano Dartiu Xavier da Silveira, da Escola Paulista de Medicina, com 30 anos de experiência no tratamento de dependentes. O outro é o gaúcho Flávio Pechanksy, diretor do Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e chefe do Serviço de Psiquiatria de Adição do HCPA.

O primeiro é favorável à legalização da maconha.

— Não por que eu ache a maconha algo inócuo, mas porque o proibicionismo somente agrava os problemas tanto dos usuários quanto dos dependentes — faz a ressalva Dartiu.

O segundo é contrário.

— Seus efeitos sobre o cérebro são conhecidos há longa data — diz Pechansky.

Confira as duas entrevistas

No livro Cannabis: A Ilegalização da Maconha nos Estados Unidos, o autor, Box Brown, diz que essa é uma droga segura e efetiva, e que não deveria ser proibida. O senhor concorda?

Flávio Pechansky – Não sei quem é Box Brown. Pelo que vi, é um cartunista americano. Não é segura. Não sei o que quer dizer “efetiva”, pois não vi o texto em inglês. A maconha não deve ser liberada, pois seus efeitos – conhecidos há longa data – são a produção de confusão mental, atraso na aprendizagem, alterações de memória e rebaixamento de QI com uso crônico. Sua liberação tem um fortíssimo impacto financeiro – somente nos Estados da Califórnia e Colorado, dos EUA, os impostos com as vendas de cannabis legalizada somam bilhões de dólares. Jamais concordaria com a liberação da maconha – em especial no Brasil.

Box Brown diz que, em nome da proibição, as autoridades “espalham velhas e já desmascaradas histórias”, como a de que a maconha seria uma porta de entrada para outras drogas. A maconha é ou não é uma porta de entrada para outras drogas?

Pechansky – Essa é uma discussão velha (e a meu ver pouco útil). A maconha está, na ordem de idade de uso, antes das drogas tidas “pesadas” (para mim, a maconha é pesada, pois sou especialista em dependência química e vejo seus danos sistematicamente no consultório). O que não se tem condições de provar é se o seu uso prévio DETERMINA o uso posterior de outras drogas. Alguns estudos dizem que sim, outros dizem que não é relação. Nenhum estudo diz que NÃO.

O autor também classifica como mentira a afirmação de que a maconha pode causar danos cerebrais permanentes. O que a ciência diz a respeito disso? Segundo Drauzio Varella escreveu em uma recente coluna, diversos estudos indicam sérios riscos de efeito deletério para cérebros ainda adolescentes, não?

Pechansky – Os estudos sobre os danos irreversíveis da maconha são razoavelmente recentes, sendo o mais importante o seguimento de jovens australianos e neozelandeses por um autor chamado Fergusson (a pesquisa afirma que o uso de maconha por adolescentes é um marcador melhor do baixo desempenho educacional do que o uso de álcool). Li o Drauzio. É isso aí. Procure no NIDA (sigla em inglês para o Instituto Nacional de Abuso de Drogas, órgão do governo dos Estados Unidos), há informações suficientes sobre psicose (algumas irreversíveis), sub-educational achievement e dificuldades sociais.

Dartiu – Se você pensar em uma droga causando lesão no cérebro, pode dizer que é mentira que a maconha provoque danos cerebrais permanentes. O álcool sim, sabidamente, mata neurônios, agride o tecido cerebral. A maconha não tem esse poder destrutivo. Agora, isso não quer dizer que tudo bem, que pode usar maconha, sobretudo na adolescência. A gente sabe que na adolescência, quando o cérebro ainda está se desenvolvendo, não só a maconha, mas qualquer substância psicoativa, incluindo o álcool, tem potencial de ser danoso. Além disso, a adolescência é um período em que a personalidade ainda não está totalmente formada, e se o indivíduo ficar chapado, não vai exercitar sua maneira de ser nos relacionamentos interpessoais, fazer amigos, se divertir. Se ele ficar chapado, ele vai perder a adolescência. Não vai amadurecer. Essas pessoas que usam maconha precocemente tornam-se adolescentes tardios, porque não fazem a adolescência. Nenhuma droga deveria ser usada por menores de idade. Também dizem que maconha não mata neurônios, mas causa esquizofrenia. Não está comprovado. Sabe-se que se uma pessoa tem predisposição genética para algum tipo de psicose, como esquizofrenia, a maconha pode ser o desencadeador, mas não a causa para alguém que não tem essa predisposição.

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