O diretor de arte Gustavo Felix fumava maconha na frente da casa de um amigo de infância, entregador de pizza, quando os dois foram abordados por policiais. “Chegaram cantando pneu com a viatura, nos revistaram e logo separaram a gente”, lembra o morador da Penha, bairro da zona leste de São Paulo. “Um dos policiais levou meu amigo para o outro lado da rua, enquanto o outro ficou comigo, fazendo perguntas do tipo: ‘Quanto você veio comprar? Que horas começa a lojinha?’”, relata Felix, referindo-se à gíria comum para boca de fumo — que, no caso, era inexistente.
Enquanto o amigo passava por uma abordagem mais truculenta, o diretor de arte explicava a situação ao PM. “Não acharam nada, deram um esculacho padrão Fifa e foram embora”, recorda. “Tivemos tratamentos ridiculamente diferentes. Meu amigo estava na rua onde mora, na porta da casa dele, e toda hora o questionavam sobre tráfico. Foi um terror psicológico absurdo.” Felix, que é branco, não tem dúvidas de que a diferença se deveu à cor da pele do amigo, que é negro.
Casos como esse são comuns, já que a atual Lei de Drogas, de 2006, não faz distinção clara entre quem trafica e quem usa, podendo punir a ambos de forma diferente, inclusive quando a quantidade de entorpecente é a mesma. Ou seja, dois amigos podem fumar a mesma quantidade de maconha na mesma rua e receber acusações distintas. Quantos gramas caracterizam cada situação é uma interpretação livre de policiais, delegados e autoridades da Justiça.
Por não haver uma quantidade definida em lei, surgem zonas cinzentas de punição, como mostra análise realizada pelo Estadão Dados com base em um estudo feito pela Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ). Divulgado em março, ele considera ocorrências registradas pela Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo de 2012 a 2017. Para maconha, por exemplo, 23 gramas são um ponto de inflexão. Em média, essa porção dá 50% de chance de quem foi pego ser considerado usuário e 50% de ser condenado como traficante. Menos que isso, geralmente, é tido como porte, e mais, como tráfico. Para a cocaína essa situação é observada com 4 gramas. Para o crack, com 1,4 grama.
Essa subjetividade da lei não existe em países da América do Sul como Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Venezuela, que não consideram crime o consumo pessoal e estabeleceram quantidades que distinguem o traficante do usuário. Na região, aliás, além do Brasil, só Guiana, Guiana Francesa e Suriname tratam como crime o porte para uso. A discussão sobre o Brasil entrar ou não no rol das nações que descriminalizam o porte de drogas para uso pessoal deveria voltar ao Supremo Tribunal Federal em 5 de novembro, mas foi adiada. A nova data ainda não foi divulgada.
Os ministros discutem se usuários de droga devem ser considerados criminosos ou não: é a avaliação, em juridiquês, da “inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas”. O debate, que começou em 2015, foi interrompido por um pedido de vista do ministro Teori Zavascki, morto em 2017 — desde então, o processo foi herdado por Alexandre de Moraes.
Antes da interrupção, três (dos 11) ministros já haviam dado seu parecer sobre o caso: o relator Gilmar Mendes, que votou a favor da descriminalização de todas as drogas; e os ministros Luiz Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, ambos a favor da descriminalização somente da maconha. Barroso sugere que o porte de até 25 gramas da erva seja o limite para configurar o uso pessoal. Já Fachin propõe que o Congresso designe as quantidades máximas permitidas.
O tema já surgiu na agenda da corte neste ano por duas vezes, mas foi postergado. A discussão, primeiramente marcada para junho, foi adiada pelo presidente da casa, o ministro Dias Toffoli, dois dias depois de se encontrar com o presidente Jair Bolsonaro para negociar um pacto entre os três Poderes a favor das reformas econômicas. Conforme apuração do jornal O Globo, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, que está à frente das discussões de políticas de drogas no governo, teria pedido a Toffoli o adiamento da sessão sobre a descriminalização.
No final de outubro, a discussão que aconteceria em 5 de novembro foi transferida após a corte suprema marcar para o dia 7 a retomada do julgamento sobre a validade da prisão após condenação em segunda instância.
A decisão do STF sobre o porte de drogas para uso pessoal é vista como estratégica porque, apesar de não mudar a lei, tende a ser seguida por outros tribunais em casos semelhantes ainda em julgamento. É possível também que, a partir dela, condenados peçam revisão de pena.